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quarta-feira, 25 de março de 2015

NOTICIA

Herberto Hélder: "E já nenhum poder destrói o poema"

No adeus àquele que era o maior poeta português vivo, lembramos quatro poemas do último livro de Helberto Hélder, A Morte sem Mestre.
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a última bilha de gás durou dois meses e três dias


a última bilha de gás durou dois meses e três dias,
com o gás dos últimos dias podia ter-me suicidado,
mas eis que se foram os três dias e estou aqui
e só tenho a dizer que não sei como arranjar dinheiro para outra bilha,
se vendessem o gás a retalho comprava apenas o gás da morte,
e mesmo assim tinha de comprá-lo fiado,
não sei o que vai ser da minha vida,
tão cara, Deus meu, que está a morte,
porque já me não fiam nada onde comprava tudo,
mesmo coisas rápidas,
se eu fosse judeu e se com um pouco de jeito isto por aqui acabasse nazi,
já seria mais fácil,
como diria o outro: a minha vida longa por muito pouco,
uma bilha de gás,
a minha vida quotidiana e a eternidade que já ouvi dizer que a habita e move,
não me queixo de nada no mundo senão do preço das bilhas de gás, 
ou então de já mas não venderem fiado
e a pagar um dia a conta toda por junto:
corpo e alma e bilhas de gás na eternidade
- e dizem-me que há tanto gás por esse mundo fora,
países inteiros cheios de gás por baixo!

queria fechar-se inteiro num poema


queria fechar-se inteiro num poema
lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena
poema enfim onde coubessem os dez dedos
desde a roca ao fuso
para lá dentro ficar escrito direito e esquerdo
quero eu dizer: todo
vivo moribundo morto
a sombra dos elementos por cima

tão fortes eram que sobreviveram à língua morta


tão fortes eram que sobreviveram à língua morta,
esses poucos poemas acerca do que hoje me atormenta,
décadas, séculos, milénios,
e eles vibram,
e entre os objectos técnicos no apartamento,
rádio, tv, telemóvel,
relógios de pulso,
esmagam-me por assim dizer com a sua verdade última
sobre a morte do corpo,
dizem apenas: igual ao pó da terra que não respira,
o que é falso, pois eu é que deixarei de respirar
sobre o pó da terra que respira,
entre o poema sumério e este poema de curto fôlego,
mas que talvez respire um dia,
ou dois, ou três dias mais:
quanto às coisas sumérias: as mãos da rapariga,
o cabelo da estreita rapariga,
a luz que estremecia nela,
tudo isso perdura em mim pelos milénios fora,
disso, oh sim, é que eu estou vivo e estremeço ainda

que um nó de sangue na garganta


que um nó de sangue na garganta,
um nó de ar no coração,
que a mão fechada sobre uma pouca de água,
e eu não possa dizer nada,
e o resto seja só perder de vista a vastidão da terra,
sem mais saber de sítio e hora,
e baixo passar a brisa
pelo cabelo e a camisa e a boca toda tapada ao mundo,
por cada vez mais frios
o dia, a noite, o inferno, o inverno,
sem números para contar os dedos muito abertos
cortados das pontas dos braços,
sem sangue à vista:
só uma onda, só uma espuma entre pés e cabeça,
para sequer um jogo ou uma razão,
oh bela morte num dia seguro em qualquer parte
de gente em volta atenta à espera de nada,
um nó de sangue na garganta,
um nó apenas duro

(in A Morte sem Mestre; ed. Porto Editora, 2014)

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